segunda-feira, 4 de julho de 2011

A Literatura como Fonte.

A relação entre história e literatura é, de fato, bastante presente atualmente nas discussões historiográficas atuais, suscitando inúmeras discussões acerca da validade da literatura enquanto fonte aos estudos históricos ou mesmo acerca das fronteiras que distinguem os discursos históricos e literários. Contudo, tal relação não é nova. Já na Antiguidade, Aristóteles, na Poética (2006, p. 43), se preocupara em definir o que era poesia e o que era história, encontrando tal distinção não na forma da narrativa, mas abordagem de cada uma destas: para Aristóteles o que difere o poeta do historiador, é o que primeiro narra aquilo que poderia ter acontecido, enquanto o segundo possui o compromisso em narrar aquilo que aconteceu. Em decorrência disto, a poesia, por seu caráter universal, é mais elevada que a história, em seu caráter particular.

Refletindo acerca dos tempos modernos, podemos notar que a preocupação com a literatura nos estudos históricos ainda se faz presente em diversas correntes e pensamentos. Dentre os autores do século XIX podemos elencar Wilhem Dilthey, no qual há uma linha tênue entre o que separa a história da arte ou mesmo da literatura; Jacob Buckhardt, refletindo acerca da poesia neolatina no Renascimento Italiano e Marx e Engels, mesmo que em apontamentos diversos e esparsos sobre a Idade Média, literatura russa, dentre outras.

Todavia, uma preocupação mais sistematizada e organizada da literatura enquanto fonte histórica surge somente no século XX, já na primeira geração da Escola dos Annales, de Marc Bloch e Lucien Febvre. Como cunhado por Bloch, em A Apologia da História, a história é ciência dos homens no tempo, de modo que quaisquer vestígios legados pelos homens ao presente são fontes em potencial para a compreensão da história. Assim, não apenas aqueles documentos oficiais adentram o rol de possibilidades de fontes, mas todos os textos, como aponta Febvre:

Os textos, sem dúvida, mas todos os textos. E não só os documentos de arquivos em cujo favor se cria um privilégio [...]. Mas também um poema, um quadro, um drama: documentos para nós, testemunhos de uma história viva e humana, saturados de pensamentos e de ação em potência. (FEBVRE apud FERREIRA, 2009, p. 64)


Portanto, cônscios das possibilidades do uso da literatura enquanto testemunho humano saturado de pensamentos e ações, devemos refletir sobre como utilizar a fonte literária, visto que cada tipo de fonte possui sua linguagem intrínseca e necessita de um determinado trato. Para tanto, nos utilizaremos das reflexões de Erza Pound e
de Antonio Cândido.

De acordo com Ezra Pound (2006) literatura é linguagem carregada de significados, de modo que o poema é uma estrutura condensada na qual o autor se utiliza de elementos formais para exprimir uma mensagem. Com Antonio Cândido, em suas obras Literatura e Sociedade e Estudo Analítico do Poema, podemos perceber que tais significados contidos no texto literário vão além daqueles contidos apenas no poema, havendo uma estrutura interna e externa do texto.

Para Cândido, a estrutura interna é composta por aquilo que está efetivamente dentro do texto, as palavras, rimas, métrica e outros recursos formais. A estrutura externa é aquilo que se encontra fora do texto, onde se encaixam os aspectos históricos, sociais e filológicos referentes ao texto. Deste modo, podemos notar com Cândido que os textos literários são históricos e só são escritos mediante às possibilidades de seu tempo histórico. Assim, o estudo da literatura pelo historiador deve se pautar na análise dialética destas duas estruturas, uma vez que a própria estética também é histórica.

Deste modo, o discurso literário possui profundas raízes históricas, de modo que a partir deste é possível que obtenhamos visões acerca da sociedade de determinadas classes sociais, determinados valores políticos, religiosos, etc. que são expressos esteticamente por meio da literatura. A palavra é um arena, como expressa Mikhail Bakhtin, onde se confrontam valores sociais contraditórios, onde a própria luta de classes pode ser expressada. Assim, a linguagem e as palavras denotam o conhecimento de mundo do próprio autor.

Maria Aparecida Baccega nos dá um exemplo bastante interessante e didático acerca disto, no qual a simples utilização de uma palavra em detrimento de outra altera todo o significado e valores de quem a utiliza. Chegar ou descobrir a América? Questão aparentemente banal que esconde atrás de si discursos e poderes. De acordo com a autora, o uso da expressão chegar mostra que o autor compreende que há populações autóctones que viviam no continente antes da chegada do europeu; no segundo caso o autor do discurso entende que os índios são como uma tábula rasa, sem cultura ou mesmo história.

A partir do que fora exposto pudemos perceber nitidamente que o discurso literário é polifônico e polissêmico, sincrônico e diacrônico, de modo que as possibilidades de trabalho com esta fonte são quase que infinitas, o que justifica Antônio Celso Ferreira nomear a literatura por fonte fecunda. Obviamente os recortes e bom senso do pesquisador devem operar para a prática de uma pesquisa rica e ao mesmo tempo exeqüível.

Além dos recortes é necessário que o historiador conheça sua fonte de modo aprofundado, o que significa que este deverá realizar alguns estudos literários. A abertura da história às múltiplas linguagens inevitavelmente obriga o historiador à busca de uma nova erudição, como aponta Elias Thomé Saliba. No entanto, por vezes, essa busca pela nova erudição tem dissipado a fronteira entre a história e a literatura e entre a ciência e a ficção.

Antonio Celso Ferreira aponta para a existência de um crítica pós-modernista, que também encontra eco na própria historiografia, que defende que a história é fundamentalmente uma narrativa como a literária. Um dos maiores expoentes dessa corrente é Hayden White, que propõe que as narrativas históricas são “ficções verbais, cujos conteúdos são tão inventados como descobertos, e cujas formas têm mais em comum com suas contrapartidas na literatura do que na ciência.” (WHITE apud FERREIRA, 2009, p. 77)

Retomar o pensamento de Marc Bloch nesses momentos é realmente eficaz e oportuno. Para Bloch, o historiador deve ser, de fato, interdisciplinar, dialogando com as mais diversas áreas do conhecimento e se utilizando das mais diversas fontes possíveis, mantendo sempre a sua identidade de historiador: o cientista dos homens no tempo. Antônio Celso Ferreira também faz apontamentos nesse sentido:


Essa lembrança é essencial para o pesquisador que trabalha com textos literários, sobretudo os de ficção histórica. É certo que o caráter polifônico destes, pelo diálogo que estabelecem entre as diferentes vozes das personagens, além da voz do narrador, possibilita a investigação da complexidade do imaginário histórico, da diversidade das ideologias e dos modos como os diferentes indivíduos ou grupos sociais se inserem dentro dele em determinadas épocas. Contudo, tais representações constituem sempre um universo ficcional, por mais verossímil que seja. O papel do historiador é confrontá-las com outras fontes, ou seja, outros registros que permitam a contextualização da obra para assim se aproximar dos múltiplos significados da realidade histórica. (p. 77)


Portanto, o trabalho com a literatura pelo historiador é um trabalho que exige a crítica da fonte e o estabelecimento de uma metodologia para este fim, de modo que o discurso do historiador se torna um discurso científico, em uma concepção de ciência que não almeja uma objetividade ou uma verdade absoluta, mas que buscar a apreensão de alguns aspectos da realidade histórico, mesmo que de modo aproximado ou representativo.

Sabendo-se disso e tomando todos os cuidados necessários à pesquisa em história, a literatura se torna um campo vasto, prazeroso e fecundo ao historiador que se dedica a esta, podendo abordá-la tanto pelo viés estético ou de seu conteúdo; articulando ambos; refletindo acerca da historicidade de um movimento literário em específico; ou mesmo pensar as proposições de um autor ou o conflito entre dois ou mais autores.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS



ARISTÓTELES. Arte Poética. Tradução: NASSETI, Pietro. São Paulo: Editora Martin Claret, 2006.
BACCEGA, Maria Aparecida. Palavra e Discurso: Literatura e História. São Paulo: Editora Ática, 2000.
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. Tradução: LAHUD, Michel; VIEIRA, Yara Fratechi. São Paulo: Editora Hucitec, 12ª Edição, 2006.
BLOCH, Marc. Apologia da História ou o Ofício do Historiador. Tradução: TELLES, André. Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar, 2001.
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade: Estudos de teoria e história literária. RJ: Editora Ouro sobre o Azul, 9ª Edição, Rio de Janeiro, 2006.
FERREIRA, Antonio Celso. A Fonte Fecunda. In: PINSKY, Carla Bassanezi (org.); DE LUCA, Tania Regina (org.). O historiador e suas fontes. São Paulo: Editora Contexto, 2009.
POUND, Ezra. ABC da Literatura. Tradução: CAMPOS, Augusto de; PAES, José Paulo. São Paulo: Editora Cultrix, 11ª Edição, 2006.
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: Tensão social e criação cultural na Primeira República. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2ª Edição, 2009.


Discente: Marcus Vinícius Furtado da Silva Oliveira.

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