sábado, 30 de abril de 2011

Fontes Históricas

Em boa medida, a construção da escrita da História e suas reflexões inerentes são interpeladas por um dilema que perpassa os olhares analíticos de diversos historiadores: a utilização da visão telescópica ou do jogo de escalas. Como já apontado sabiamente por Laura de Melo e Souza, todo historiador digno desse nome, periodiza e se vale de recortes na confecção de suas pesquisas, no entanto, o modo como tais recortes e visões da história foram praticados ao longo do tempo nem sempre fora o mesmo, uma vez que estas são historicamente construídas e derivam das concepções do pesquisador acerca do que é história.
Nesse sentido, é importante vislumbrarmos como tais elementos eram vistos nos principais movimentos historiográficos dos últimos séculos, em uma abordagem bastante panorâmica, articulando-os também com o pensamento contemporâneo, afinal, a história é constituída das questões do presente, de inúmeros “agoras“, como sugeriu Walter Benjamin.
Durante muito tempo a escrita da História se ancorou em narrativas que apreendiam temas majoritariamente políticos. É importante ressaltar que aqui a política assume um caráter reduzido, restringindo-se aos governos, reis e príncipes. Desta maneira, os recortes já se encontravam estabelecidos, pois o próprio objeto de estudo da história também o estava. Estávamos, portanto, segundo René Rémond, diante de uma história factual e individual.
Todavia, não devemos ser reducionistas e atribuir essa concepção de história apenas ao positivismo ou ao historicismo, encarando ambos como correntes similares ou iguais, quando, na verdade, são completamente divergentes, até antagônicas. Posto isto, não devemos nos alongar nessa discussão, uma vez que este não é nosso objetivo em si e também por tal discussão extrapolar os limites deste espaço.
Considerada por Peter Burke como a “Revolução Francesa da Historiografia” e por José Carlos Reis, como uma renovação teórico-metodológica, a Escola dos Annales certamente amplia e desenvolve as noções básicas de fontes históricas. Assim, as fontes que antes eram restritas apenas aos documentos escritos, no caso dos positivistas, e a alguns símbolos, como no caso de historicistas a exemplo de Dilthey, são agora todos os vestígios produzidos pelos homens no tempo, como formulou Marc Bloch.


Marc Bloch (1886-1944), um dos fundadores da Escola dos Annales.
Em análise mais profunda, esse novo trato documental revela uma nova concepção acerca da história, uma nova representação do passado inaugurada pelos Annales. Há, portanto, um passado condicionado pelo presente e suas questões que engloba diversos atores, diversas possibilidades, temas, fontes, dimensões e abordagens da história. Deste modo, a história aspira, até certo ponto, a uma certa totalidade, buscando interligar as várias dimensões do homem e suas criações.
As contribuições, por exemplo, ao longo do tempo da história cultural nos demonstram tal fato com clareza quando passam ao considerar elementos da história oral ou a literatura – criando-se por vezes interessante interface com a arte e lingüística - abrindo-se ainda mais o leque de análise histórica. Ademais, com as recentes inovações tecnológicas, não podemos deixar de desconsiderar as fontes audiovisuais, bem como as virtuais, campo novo ainda a ser trabalhado pelos historiadores.
No bojo dessa contínua ampliação os dilemas e os perigos ao historiador se intensificam, ao ponto da ocorrência de uma fragmentação da historia, ou da existência de uma história em migalhas, como conceituou François Dosse, com certa dose de exagero e razão. Assim, diante desse amplíssimo panorama de possibilidades de análises históricas, o que devemos abordar? Quais recortes e quais fontes devemos utilizar? Devemos olhar as folhas da árvore, a árvore, algumas árvores ou toda a floresta, sabendo que em cada análise muito não será respondido, por mais que as perguntas surgem no decorrer da pesquisa?
De fato, a curiosidade e ânsia dos historiadores, sobretudo dos jovens e iniciantes, são enormes. No entanto, é necessário que o historiador possua determinado bom senso e crítica na delimitação de seu tema, para que o mesmo não opte por algo inviável que ultrapasse suas próprias possibilidades de pesquisa. As grandes sínteses ainda são possíveis, ao contrário do que pensam os pós-modernos, contudo, suas dificuldades são imensas e talvez somente os historiadores mais maduros consigam executá-las. O extremo oposto também é possível, como já provou a micro-história, o retorno das biografias e as histórias locais e regionais.
Deste modo, é fundamental o trabalho com as fontes e sua respectiva crítica. Os problemas e as delimitações surgem no âmbito das fontes, na atuação do historiador enquanto sujeito e objeto desta que, por sua vez, também é sujeito e objeto, em uma relação dialética. Para concluirmos, é sempre oportuna a leitura e os conselhos de Bloch: devemos ser interdisciplinares, pesquisar aquilo que as aspirações do presente nos ditam, mas, acima de tudo, devemos sempre manter a cientificidade da história. Assim, o dilema entre a visão telescópica e o jogo de escalas deve ser solucionado pelo historiador dentro da ciência histórica e, talvez a perpetuação e o repensar dessa ciência sejam a solução para tal dilema.

A pesquisa documental sob o prisma de um historiador

"Para exemplificar o trabalho com documentos, posso citar uma experiência que tive no Arquivo Público de Uberaba durante o IV período. Ao chegar no APU, tinha em mente que teria contato com documentos sobre a escravidão em Uberaba e região e a princípio até tinha um tema como norte da minha busca investigativa em meio aos “restos do passado”.
Ao analisar o catálogo dos documentos presentes sobre escravidão me deparei com uma imensidão de fontes sobre o mesmo tema, dentre eles resolvi delimitar minha análise aos processos crimes do final do Império.
Tive então o primeiro contato com o livro que continha os processos crimes da época selecionada, após passar por páginas e páginas de relatos do passado um processo me chamou atenção de uma forma que posso dizer que senti o cheiro da minha caça. O processo citado faz referencia a um caso de dois senhores que compram metade de um mesmo escravo para uso comum deles.
O contato propriamente dito com o documento foi desafiador, por se tratar de um olhar para o passado e pela diferente ortografia presente no documento forense. Justamente com a presença desse desafio proposto pelo documento ao historiador é que se constrói o diálogo entre o pesquisador e o documento analisado, emergindo assim o problema que irá nortear a pesquisa histórica. Aliado a esse exaustivo trabalho de interpretação – incluindo a análise linguística histórica – se faz necessária uma prática comum quando tratamos de documentos, a transcrição. Essa etapa depende totalmente do trabalho anterior citado uma vez que só podemos transcrever aquilo que conseguimos identificar como escrito. Dentro da experiência vivida devo frisar aqui que nem todas as expressões foram identificadas com clareza, visto que se trata de um documento do final do século XIX." Rodrigo Peres


Além disso, encontramos uma interessante entrevista do historiador Dr. João Carlos de Souza, acerca do trabalho com as fontes históricas. Vale a pena conferir:




Alunos: Anna, Rodrigo, Marcus e Keyller.

quarta-feira, 6 de abril de 2011

Acerca do documento

 A partir do excerto de Umberto Eco, o simpático grupo de meninas elaborou uma interessante reflexão. Deixe-se envolver:

       Para começarmos a atividade sobre o excerto de “Baudolino”, pretendemos expor este e os pontos principais dos textos vistos na disciplina de EDP – Educação e Desenvolvimento de Projetos 5 – para que, só após, fechemos nossa interpretação sobre aquela.

“Se queres transformar-te num homem de letras, e quem sabe um dia escrever Histórias, deves também mentir, e inventar histórias, pois senão a tua História ficaria monótona. Mas terás que fazê-lo com moderação. O mundo condena os mentirosos que só sabem mentir, até mesmo sobre coisas mínimas, e premia os poetas que mentem apenas sobre coisas grandiosas”.
(Umberto Eco, Baudolino )

O primeiro texto a que tivemos acesso na Unidade Temática foi o de Leandro Karnal, “A memória evanescente”, capítulo inicial do livro O historiador e suas fontes, organizado por Carla Pinsky e Tania Regina de Luca. Neste encontramos um tema que já discutimos anteriormente em outros momentos do curso: a questão das fontes. Tal tema fez com que recordássemos do ensaio que fizemos no segundo período do curso – no qual, por meio dos textos que tivemos acesso durante o semestre, tivemos que estruturar uma obra particular, baseada nos textos estudados. Assim, nossa interpretação se misturaria e se basearia nas outras já presentes nestes textos – mas sem um “toque” pretencioso ou inventivo. Esse “toque” fez com que a estruturação e trato com as fontes fosse único e ímpar para a nossa construção enquanto historiadores. Soubemos os limites e as várias informações que pode-se retirar de um texto sem ao menos substituí-lo por outra fonte/viés. O “ver as entrelinhas” e o como a fonte pode despertar inúmeros olhares – mas os “bons olhares”, que sabem como a inferir/retirar uma construção fortificante – foram pois um dos primeiros contatos e ensinamentos que tivemos com à analise de fontes.                  
     O texto citado acima reforça a experiência que tivemos e trata/quer mostrar exatamente a complexidade das fontes. Relata que, no começo, somente material escrito – como cartas, escrituras, etc – eram considerados “verdadeiros documentos” e pois “verdadeiro material para passível construção de uma história”.
Já com o surgimento dos Annales e o estudo da micro-história, “documento” passa a ter outra interpretação/uso, passando a ser tudo o que retrata a ação do homem – como arte, oralidade etc. Isso equivale, pois, a dizer que houve uma ampliação de objetos e de sujeitos que agora são suscitados e trazidos à tona, desconstruindo certas formulações instituídas – politicamente, inclusive – e que modulam novos vieses de interpretação de uma mesma temática.
É em cima de tal questão/com base nisso é que o autor vai tratar da questão da “veracidade” das fontes. Se tudo o que era documento era verídico, porque então construir uma “nova história” em cima dos documentos? E agora, com a ampliação de fontes, tudo também é verídico ou atende a perspectivas da História? Como valer-se de um “verdadeiro” fato histórico ou de um “simples” fato? Vale, pois delinearmos isto melhor.
O autor ressalta e questiona no texto a questão da falsificação dos documentos ao longo de todo história. Os Faraós – no Egito antigo – já falsificavam documentos e tal “prática/hábito” se prolongou até o nosso presente – o que nos ilustra bem o “perigo” de se prolongar a questão de “documento” como obra puramente verídica. Juntando a esta ideia e passagem, há outro episódio interessante que relata a falsificação dos “diários de Hitler”. Neste presente episódio, os falsários não tiveram muita sorte e acabaram presos.
O que fazer nesta circunstancias? Como agir?
Até hoje persiste uma busca incessante pela autenticidade/verossimilhança dos documentos. Desta maneira, a ideia central de tal texto nos ilustra não somente o difícil trato do historiador com a sua fonte, mas, também, que os documentos são construções “humanas” e que, portanto, atendem aos mais diversos anseios e circunstâncias. Para isso, o historiador que aventura-se pelas construções e pesquisas que lhe interessem – demonstrando aí que o historiador apesar de ser um sujeito nem tão “não-determinista” assim, já que mostra seu anseio de optar em um tema e não em outro – deve tomar cuidado.
A fonte está dada, mas a construção desta deve passar pelos seus instrumentos adquiridos na qualificação de graduação, etc – que são o suporte que somente este tem para construir algo “fortificante” à História em geral. Portanto, o “construir uma história” é saber que ela está/é passível de desconstrução. E que o documento histórico – como o autor, Leandro Karnal, define – é “em, síntese, (...) qualquer fonte sobre o passado, conservado por acidente ou deliberadamente, analisado a partir do presente e estabelecendo diálogos entre subjetividade atual e subjetividade pretérita”. (KARNAL, 2009)

       Já no segundo texto que estudamos, intitulado “Aventuras modernas e desventuras pós-modernas” de Elias Tomé Saliba – presente no mesmo livro –, este dá continuidade a discussão em torno das fontes. Relata uma questão de uma história mais presente, como a do holocausto, ocorrido na Segunda Guerra Mundial; a então denominada “história dos mortos-vivos”. Explica-se que em tal ocasião, a denominação advém da história relatada por pessoas que viveram certos momentos históricos e que, porém, não compartilham (e se compartilham, compartilham pouco) da história em que viveram/acumularam com seus descendentes/antepassados. Desta maneira, existe uma grande preocupação pelos historiadores para que tal história não seja esquecida ou distorcida após a morte da ultima testemunha de determinado momento histórico.
Ao passo que existe esta preocupação, também há outra questão em que o autor também observa/coloca em questão: que há uma busca exagerada pela verdade absoluta da história pelos historiadores.
Sob a égide destas questões, porém, o autor tem uma conclusão que traz um ponto de vista muito interessante: que a construção da historia é uma questão de escolha, ou seja, os documentos não existem de formas isoladas – eles não são restos do passado, mais um produto dele. Os “pontos de vista”, “o que” preservar e o “como” preservar, serão ditados às necessidades pela qual a estrutura cotidiana do historiador o exercita/suscita ou a necessidade de construção/desmistificação da qual a temática o apreende. O documento não vai dizer o que representa: cabe aos historiadores determinarem o significado destes – e que portanto/a partir disso, cada um terá um ponto de vista distinto/interpretação distinta do outro.
Segundo o autor – e reforçando; contudo encerrando este segundo texto – “o documento escrito ou não escrito é um pequenino ponto de toda série de estruturas humanas desaparecidas que, por capricho, fruição, contingência – e até mesmo algumas excentricidades – acabaram por sobrar e subsistir no presente”. (SALIBA, 2009)

            Com base nas duas exposições de textos vistos e o excerto de Baudolino, acreditamos ser de mais fácil visualização a proposta de tal atividade. Por Baudolino, apreendemos que parece ser mais “fácil” mentir para adquirir popularidade em um primeiro momento que simplesmente ser verdadeiro. Porém, como o mesmo fala, a mentira esvai se não ser bem contada ou se não ser direcionada de alguém que transparece “ser verdadeiro”. Mesmo assim, qualquer poeta (e aí, aquele que escreve sem o instrumental comparável do historiador) que retrate tal circunstancia, muitas vezes ganha o “reconhecimento” por tal feito ou por ter “dado o valor” à fonte de algum dado momento.
            Fica, nas entrelinhas portanto que qualquer um pode escrever qualquer história –  se não se tem um “filtro” de todas as coisas que chegam; uma construção do subjetivo que pode interferir no real, dependendo das circunstancias. Porém, “qualquer” história não pode ser aceita numa pesquisa/delineação/desmistificação de um historiador. Portanto, quando se exalta a qualidade de discussão de textos sobre fonte, é justamente o que o historiador deve ater-ser/voltar seu olhar quando pautar-se a escrever uma tese/temática delineada.
            O historiador aí distingue-se da faculdade de outros escritores justamente por ter o cabedal instrutivo de “como lidar” com as fontes e “como ater-se” à alguns parâmetros – sem querer pois um dado “reconhecimento” ou outra coisa que não seja apenas o “fato bem construído”. O determinismo – no que se refere a temática – deve tentar ser o menor e que, portanto, a verossimilhança dos fatos e estruturas sejam os seus objetivos sobre um dado momento histórico. Saber que sua construção – repetindo o que dissemos anteriormente – é passível de desconstrução com as novas fontes surgindo a todo o momento é que deve aliar/ajudar o pesquisador a entender a sua área e sua atuação enquanto profissional.
            Uma mentira formulada e repetida não deve ser o cabedal de instrução de um historiador e, evidenciando com a discussão do segundo texto, a “verdade incontestável” só deve ser chegada após a transformação de determinado fato em um verdadeiro – e portanto desmistificado – fato histórico – lembrando que este, como já disse, é (re)construído.
Ao passo que uma construção é desmistificada, não se pode desconsiderá-la também por inteiro: buscar suas causas de construção e servir de referencial deveras fortificante se deve apenas no “como” o historiador sabe manejar suas fontes. Portanto, nem toda mentira deve ser desconsiderada (como Baudolino de certa forma afirma), mas sim como ela é manejada/trabalhada/interpretada pelos historiadores que com seu cabedal oferece informações construtivas.

Autoras: Kamilla, Karine e Marcela.